EGAS MONIZ E A LOBOTOMIA (OU SERÁ LEUCOTOMIA?)
A Colecção "Grandes Figuras Portuguesas" do Diário de Notícias homenageou o médico Egas Moniz com a edição no dia 7 de Setembro de 2006 de uma moeda comemorativa. Como sempre, as moedas vêm acompanhadas de um pequeno cartão sobre o homenageado (ver imagem em cima). O de Egas Moniz dizia o seguinte:
«O professor Egas Moniz revelou ao mundo algumas das maiores descobertas, através dos seus estudos e observações na área da medicina. Pela sua mão surgiu uma importante intervenção cirúrgica ainda hoje designada por Lobotomia Pré-Frontal e também a descoberta da Angiografia Cerebral Humana, que representou um grande contributo para a medicina.
No ano de 1949 o seu trabalho foi laureado pelo Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina.»
Porém, as boas intenções do DN em relembrar Egas Moniz como uma grande figura portuguesa vêm devidamente acompanhadas das respectivas falácias que ao longo do tempo a literatura secundária de autores incompetentes vem introduzindo na nossa memória colectiva. Vamos cingir-nos ao texto. Devo dizer que é a primeira vez que vejo escrito na imprensa «Prémio Nobel da Fisiologia ou Medicina» (e não Fisiologia e Medicina, como é vulgar escrever-se), uma tradução correctíssima do original, o que demonstra algum rigor. E digo algum porque de facto Egas Moniz partilhou o prémio com Walter Wess, logo o correcto é dizer que Egas Moniz foi laureado com 1/2 Prémio ou então que partilhou o Prémio com Walter Wess, que é a forma mais elegante. De facto, o prémio é só um. E ele é dividido consoante o número de lauredos. Neste caso, em 1949 a Fundação Nobel resolveu atribuir o Prémio Nobel da Medicina ou Fisologia a duas personalidades - Egas Moniz e Walter Wess - pelo que cada um recebeu metade do prémio. Aliás, é desta forma que é referida a atribuição do prémio a estes dois cientistas no sítio da Fundação Nobel (ver aqui).
Por outro lado, e aquilo que mais nos interessa, é o seguinte excerto: «Pela sua mão surgiu uma importante intervenção cirúrgica ainda hoje designada por Lobotomia Pré-Frontal». E aqui começam as falácias. É bastante frequente misturar-se leucotomia com lobotomia e pré-frontal com frontal. Podia tratar-se de uma simples confusão mas não. Esta confusão foi introduzida para servir fins sociais bastante perniciosos. Mas vamos começar pelo princípio. Porque é que leucotomia pré-frontal e lobotomia frontal não podem significar o mesmo? Primeiro, porque em termos etimológicos significam coisas diferentes. Leucotomia vem do Grego leukós, que significa branco, + tomé, que significa corte, ou seja, corte da substância branca do cérebro. O substantivo pré-frontal refere-se à localização em que se procede ao corte da substância branca, isto é, leucotomia pré-frontal significa corte da substância branca da porção pré-frontal do cérebro. Por outro lado, lobotomia vem do Grego lóbos, que significa porção ou parte, + tomé, que significa corte, ou seja, corte de uma parte ou porção. O substantivo frontal que se segue refere-se à localização, isto é, lobotomia frontal significa corte da porção frontal do cérebro. Se etimologicamente significam coisas diferentes, em termos técnicos também. A leucotomia pré-frontal é muito mais específica do que a lobotomia frontal. Outro pormenor importante é que a leucotomia é feita através da trepanação do cérebro e a inserção na substância branca da porção pré-frontal de um instrumento inventado por Egas Moniz e designado por si de leucótomo. Já a lobotomia frontal é feita através da inserção, com uma batida leve de um martelo, de um instrumento em tudo semelhante a um picador de gelo, através da parte superior das órbitas (e por isso se diz que o acesso é trans-orbital), seguido de um movimento lateral rápido para romper as fibras. Ainda outro pormenor, talvez o mais importante, é que a leucotomia pré-frontal foi inventada por Egas Moniz e a lobotomia frontal foi inventada por Walter Freeman (com base nos princípios da leucotomia, naturalmente).
Um outro aspecto interessante é que, curiosamente, a leucotomia pré-frontal foi pouco praticada em Portugal, ao contrário de outro países que a aplicaram em grande número como Itália ou Inglaterra. No entanto, foi nas Américas que teve maior divulgação. Mas atenção. Ficou-se pela divulgação porque se eventualmente num primeiro momento a leucotomia pré-frontal foi a técnica executada, depressa a lobotomia frontal tomou o seu lugar por iniciativa de Freeman. Na verdade, foram feitas milhares e milhares de lobotomias frontais contadas entre os Estados Unidos da América e o Brasil. Fica para a história o «lobótomo», um carro minimamente equipada em que Walter Freeman se deslocava pelo país para divulgar e popularizar a lobotomia frontal e, obviamente, lobotomizar quem estivesse disposto a arriscar a cura. Não é difícil de pressupor que Freeman apresentava a lobotomia como a boa nova, o milagre da medicina. E também não é difícil pressupor que Freeman, um tipo inteligente, se protegia quanto aos perigos desconhecidos da técnica dizendo que era coisa inventada por um neurologista português, o que explica de certa forma o "ódio" que alguns americanos nutrem por Egas Moniz (veja-se o caso mais recente da neta de uma paciente lobotomizada que criou um movimento com o objectivo de ser retirado o Prémio Nobel a Egas Moniz), de tal forma que não conseguem manter a postura e escrevem livros deturpando as fontes, como é o caso, por ventura o mais paradigmático e o mais grave, de Elliot Vallenstein, um professor de psicologia e neurociências da Universidade do Michigan que escreveu em 1986 «Great and desperate cures», um livro amplamente divulgado e frequentemente o encontramos em posição privilegiada na bibliografia de outros livros (p.e., Uma História da Psiquiatria - da Era do Manicómio à Idade do Prozac, de Edward Shorter) e sobretudo de cursos universitários de pré e pós-graduação (p.e., no curso de História das Ciências Humanas na Universidade de Sydney, o Dr. Hans Pols lecciona um semestre sobre História da Psiquiatria). Mais tarde voltaremos a Vallenstein. Por enquanto, o que importa referir é que há uma clara intenção na confusão de termos. É a lobotomia que a história recorda como uma coisa má. E por isso Egas Moniz é associado à lobotomia. Consciente ou inconscientemente. A verdade é que é. O rigor perde-se nas intenções. As falácias são de vários tipos: manobras de dispersão, apelo a motivos em vez de razões, falácias indutivas, da ambiguidade e da explicação ou simplesmente erros na definição. Tudo serve para condenar Egas Moniz a esse lugar ambíguo da história, o de um homem de maus instintos que ganhou o prémio Nobel à custa de um tratamento cruel. Para quem procurava há muito tempo uma cabala a sério, aqui têm uma. Para o pior, os americanos fizeram-nos acreditar que Egas Moniz foi mesmo um homem mau que andou por aí a furar o cérebro às pessoas em troca de um momento de glória e de um lugar na história. E nós acreditámos mesmo. E por isso vamos reproduzindo os erros porque, afinal, terá sido muito provavelmente a única coisa que nos ensinaram.